Do pódio ao banimento do esporte: as consequências do doping
- bs143801
- 21 de ago. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2020
O presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB, Rafael Cobra, explica como o uso intencional ou não de substâncias dopantes trouxe graves consequências para a vida de atletas - e em alguns casos, encerrou carreiras de sucesso
Por Bárbara Silva
Sem bandeiras, hino, nem honras. É a situação da Federação Russa nos Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020 e em todas as competições mundiais por quatro anos. Isso porque foi descoberto um grande esquema de doping que envolvia desde atletas até mesmo dirigentes do esporte e membros do governo russo.
“O movimento russo é governamental, de êxito esportivo. Transcende o atleta que quer levar uma vantagem esportiva. É muito mais grave e amplo que isso”, explica o presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB de Santos, o advogado Rafael Cobra. “Isso se iniciou naquela época da Guerra Fria e o esporte sempre serviu como panorama social”.
Mas para entender um caso em larga escala como este é preciso conhecer primeiro o que é doping. Cobra define esta prática como o “uso de substâncias proibidas para obter vantagem sobre outro atleta”. No entanto, ela não é tão simples quanto parece, e nem todo caso é o mesmo ou se assemelha à esta definição.
A Agência Mundial Antidoping (ou no inglês WADA), criada em 1999 para monitorar casos de doping ao redor do mundo e preveni-los utilizando-se das mais avançadas formas de tecnologia, traz duas situações de doping: inconsciente e consciente.
Há diversos casos em que o doping pode ser inconsciente, mostrando que o perigo nem sempre está num medicamento produzido para melhorar o condicionamento físico - às vezes, é uma pequena substância proibida em um medicamento aparentemente inocente.
Cobra cita um caso profissional de um jogador de futebol que teve uma lesão no joelho e fez o tratamento todo dentro das dependências do clube. O próprio médico injetou no joelho dele uma substância considerada dopante. “A coisa é tão detalhista no ambiente do doping que a mesma substância, se fosse ingerida via oral, por medicamento, era permitida. O ingresso dela no organismo pela via venosa é proibida, porque a forma de absorção do organismo é diferente”, relatou.

O médico assumiu completa responsabilidade pelo ato e admitiu ter ministrado de forma incorreta o medicamento. Como resultado, o atleta recebeu apenas uma advertência e o médico foi punido.
Esta é uma particularidade do Código Mundial Antidoping 2015, o mais recente até o momento (o novo deverá entrar em vigor em janeiro de 2021), que pode punir não somente atletas, mas o também membros do staff que estejam envolvidos de forma direta ou indireta.
Outro caso de doping inconsciente foi o do nadador César Cielo. Em 2011, ele e mais três nadadores foram pegos em um exame com um composto diurético de furosemida no organismo. Cielo conseguiu demonstrar que o erro foi cometido pelo laboratório que manipulou seu medicamento controlado, contaminando-o por acidente com uma substância proibida. Este tipo de dopagem não-intencional é chamado contaminação cruzada, e pode ocorrer pela falta de higienização adequada de uma ferramenta.
Ainda sim, mesmo em casos não-intencionais de dopagem, a premissa do Código Mundial Antidoping é de que o atleta é responsável por 100% das substâncias que entram em seu organismo. “O que é feito nesses casos onde ele mostra que não tinha nenhuma responsabilidade e não tinha intenção de se dopar para competições, a punição tende a ficar na advertência”, explica Cobra. Foi o caso de César Cielo.
No geral, casos de doping não-intencional costumam render dois anos de punição ao atleta, e no caso de reincidência, a pena deve dobrar.
Em casos intencionais, a punição é mais grave
O multimedalhista olímpico e estrela da natação chinesa Sun Yang foi suspenso em fevereiro de 2020 de participar de qualquer competição de natação mundial por oito anos.
Isto porque ele não é réu primário, cuja pena seria de quatro anos. Em 2014, ele foi flagrado no exame antidoping, e em 2018, recusou-se a realizar o teste, o que também é passível de punição. “Foi o mesmo que decretar o fim da carreira dele”, diz Cobra.
Não há uma terceira chance. Em 2007, a nadadora brasileira Rebeca Gusmão foi banida definitivamente do esporte após ser pega duas vezes no exame antidoping. Em ambos os casos, com o hormônio testosterona no organismo.
Rafael Cobra ainda reforça sobre a rigidez das medidas: “Não é que ele não pode disputar a competição desportiva. Durante o período de punição, ele não pode sequer frequentar o ambiente do clube. Ela não pode treinar, usar a academia, está excluído daquela modalidade esportiva pelo período de inelegibilidade. ”
No entanto, a partir de dois meses do fim da punição, ao atleta é permitido praticar no clube ou no local de hábito, como forma de se readaptar e voltar à prática esportiva sem prejuízos.
Além da ausência no exame, como foi o caso da segunda suspensão de Sun Yang, que pode considerar o atleta culpado, há outra hipótese em que não há demonstração de inocência e no qual o atleta também pode ser punido: o sistema ADAMS (Anti-doping Administration and Management System), no qual o atleta precisa informar sua localização a cada três meses para que uma Autoridade de Testes possam localizar o atleta para fazer um controle fora de competição.
Nas competições também há fiscalização. A Agência Brasileira de Controle de Doping (ABCD) possui agentes fiscalizadores que fazem um mapeamento de competições esportivas. Eles analisam competições anteriores onde um atleta teve resultados iguais. “Chama a atenção o atleta que tem sempre um resultado muito padronizado e de uma hora para a outra dá um salto e se mantém nesse salto. Não é ele acordar um dia inspirado e obtém bons resultados. Se for, ele dá um pico e volta ao resultado dele. Agora, quando dá um salto e se mantém, é uma forma dos agentes fiscalizadores da ABCD ficarem em alerta”, explica Rafael Cobra.
O processo
Até 2017, cada modalidade desportiva julgava seus próprios casos de doping em seu tribunal de justiça desportiva respectivo. “O atleta pego intencionalmente no futebol recebia uma punição e se fosse em outra modalidade, como o vôlei, por exemplo, era punido de forma diferente, por exemplo”, explica Cobra.
Daquele ano em diante, a WADA determinou que os casos de doping fossem centralizados em cada país. Nisto, o Brasil criou o Tribunal de Justiça Desportiva Antidoping, vinculado ao Conselho Nacional do Esporte e ao Ministério do Esporte em Brasília. Já a aferição dos resultados fica por responsabilidade da ABCD. Com a centralização, independentemente da modalidade, há uma padronização dos casos para aplicação de uma pena mais justa.
Resultado positivo
Quando um resultado atesta positivo, o atleta tem a oportunidade de realizar a abertura da amostra B, que é colhida junto da amostra A na coleta de urina e armazenada caso seu uso seja necessário. No entanto, há um custo, que não é barato. “Muitos atletas que sabem que agiram de forma não correta, já abrem mão de analisar a amostra B”, diz Cobra.
Se mesmo assim, após análise da amostra B o resultado também for positivo, o atleta recebe um prazo para apresentar uma justificativa prévia. Depois disso, a promotoria do Tribunal de Justiça Desportiva Antidoping deve analisar a justificativa do atleta e dizer se é o caso de apresentar uma denúncia contra o atleta.
Caso a denúncia seja aceita, inicia-se um processo disciplinar contra ele. Mas ainda há a oportunidade de apresentação de provas técnicas. Segundo Cobra, “Como a punição do doping é extremamente rigorosa, também é dada muita oportunidade de produção de prova ao atleta, para que ele possa justificar e se livrar ou no mínimo atenuar uma punição”, enfatiza o advogado.
A partir daí é marcada a sessão de julgamento, com a possibilidade de testemunhas, produção de mais provas que ainda não tenham sido apresentadas e sustentação oral de advogados. Então, o Tribunal de Justiça Desportiva Antidoping do Brasil aplica a punição que entender devida.
Depois disso, a punição é informada ao WADA, para que ela seja estendida ao ambiente mundial - proibindo assim que o atleta participe de qualquer competição nesta escala pelo tempo de punição estipulado.
Consequências
Porém, não somente o atleta é afastado de competições desportivas. Ele é obrigado a devolver toda a quantia em dinheiro que recebeu em prêmio, se for o caso da competição. E se ganhar uma medalha de ouro, por exemplo, é obrigado a devolvê-la, e o segundo colocado será premiado com ela. A medalha de prata vai para o que ficou na terceira posição, e assim por diante.
Algo semelhante aconteceu com a equipe de revezamento 4x100 da Rússia, medalhistas de ouro. A atleta Yulia Chermoshanskaya foi flagrada no programa de reexames de amostras recolhidas nos Jogos de Pequim de 2008.
Portanto, em 2016, a medalha de ouro ficou com o segundo colocado no pódio (Bélgica), a de prata com o terceiro (Nigéria), e a medalha de bronze ficou com o Brasil.
Mas o que seria este reexame? No recolhimento das amostras, uma fica armazenada por dez anos para que possam ser feitas análises posteriores. Isso porque a WADA procura investir a cada ano em novas tecnologias e criando mecanismos para fiscalizar e punir de forma mais severa casos de doping. Portanto, a tecnologia usada para fazer a análise de amostras em 2008, como no caso da atleta russa citada, não era a mesma tecnologia de 2016.
Lance Armstrong
Sete títulos Tour de France, conquistados entre 1999 e 2005, após sofrer um câncer, considerado um ídolo do ciclismo mundial. Porém, tudo ruiu para Lance Armstrong após o banimento do esporte em meio a acusações de doping - e de herói, passou a ser considerado uma fraude.
No entanto, em entrevista para a rede de esportes americana NBSCN, ele diz que fez o que tinha de fazer para vencer, e que não mudaria nada, mesmo indo ‘de herói a zero’.
“A punição é muito rigorosa,” comenta Cobra, “mas a punição ao atleta até transcende a punição desportiva - a perda do prestígio, não só na modalidade dele, mas no ambiente desportivo como um todo. Ela é traumática”, resume Cobra.
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